A dança dos vampiros

Prelúdio

Assim como quem joga conversa fora
vou jogando noite afora
pelas persianas do sonho
palavras que eu colho do chão.
Nada de mais, não, é só
um troço, um treco,
um trapo, um retrato de um amor
perdido
nos rabiscos de um guardanapo.


Balada

É noite.

De tempo em tempo na rua um semáforo abre um claro.
Pela cidade o silêncio. As vozes todas calaram.
As ruas todas rebrilham por sob os faróis do carro.

Terra sem dono. E sob os meus olhos, teu corpo claro.
Nas esquinas do teu corpo eu me desnorteio e caio.
Me embriago dos teus lábios. Paro. Me desamparo.

Mais um gole e me reparo. Sigo, cruzo incontáveis bairros:
casas de ódio e de zinco, becos de medo e de barro.
Teu nome aflora em meus lábios. Procuro louco o teu pulso

em algum lugar do dial. (Te amo. Tenho olhos
e febres e um faro infalível pro sangue mais raro.)
As ruas claras da noite eu percorro, em fogo calmo.

O meu país é a noite. As ruas claras – disparo.
Teu corpo é idêntico à noite em minha maneira de amá-lo.
Estou entre a cruz e a espada, entre línguas e cigarros.

E as tuas curvas na noite eu percorro, em fogo calmo,
assoviando allemandes para os prédios que passaram
a cento e vinte por hora pela janela do carro.


Romance

mordo a tua boca,
e a tua boca me sabe
à carnadura do dia, e a alarme.
teu ventre se move, rente: só nele cabe
o meu cáustico presente. dedos, línguas
indecentes passeando sobre a carne,
sente! dentes cravados na carne!
um deus perdido somente.

danço sob a tempestade
nosso túrbido romance. dance!
cante! cale a tarde, ou faça ruir as distantes
eras de medo e de mármore. num alarido de transes,
lances, luas, tu arde nua – nuances – pelas ruas
da cidade. dance! canse! sem alarde
neste corpo que tu invade plante um vão
de vento ou ave! este corpo, no ar da tarde,
trance ao teu, e à tempestade! eu:
só mais um deus sem chance
vagando pela cidade.


Fuga

Orquídeas no chão
cinzento da rua.
Som e fúria: furacãoOrquídeas caídas
em quase surdina.no meio da rua.
E o tempo rondandoDois corpos deitados
pelas esquinas na noite sem lua.
escuras. Pelas narinas (E o tempo rondando,
o risco e o fogo mudando a textura
– dois corpos deitadosdos nomes, das lutas.)
na noite sem lua. Fogueiras antigas
por lentas esquinas
mudas. Som e fúria:
Orquídeas rompidasfuracão, espadas
no meio da rua.impuras.
Som e fúria: furacão,
espadas sem rima.
E rondando as esquinasOrquídeas rompidas
e os céus das meninasespadas impuras.
o tempo e a morteRondando as esquinas
– lenta e segura.o tempo e a hora.
Dois corpos deitados.Lenta e segura,
Calmos, agora.A morte procura
Som e fúria: furacão,pelas esquinas.
espadas sem rimaDois corpos deitados.
– sonoras.Prontos, agora.



Variações sobre um mesmo tema

Mas vamos aos fatos.
É quinta-feira e um cargueiro
apita em meio ao fog cerrado.
É quinta-feira. Tonto, eu passo,
e os dias passam, sem assombro,
sobre o asfalto. Pelos becos, pelos bares,
há pares desamparados. Teu corpo azul
resta imerso num mar de versos
sagrados. Pelas telas, pelos trilhos,
trens noturnos assombrados reluzem na contraluz
de um ou outro poste ilhado no meio
da estrada turva – sóbrios anjos nos aguardam
depois da próxima curva: nosso destino selado.
E os carros dançando na chuva, e o sangue
à altura do peito fazendo a linha do baixo.

Mas vamos aos fatos.
é quinta-feira e um petroleiro
passa ao largo. Num copo azul
restos de tudo: ritos, fados, hieróglifos,
rostos, lutos, céus frustrados. Ao que parece
aqueles dias permanecem:
nada do chão que pisamos surge
ou ruge – ninguém será salvo.
É fim de século e nossa rota
passa ao largo. E os carros
são semifusas no pentagrama
do tráfego.

A toda pela cidade. É quinta-feira
e em minha veia corre um sangue misturado:
THC, adrenalina, e o sal calmo
dos teus lábios. A toda pela cidade.
A toda, em quatro por quatro:
os carros são semifusas – e um semáforo,
um compasso. E o teu corpo
ecoa a fúria em bancos
de carros roubados.

Mas vamos aos fatos. É quinta-feira
em minha veia e um petroleiro passa ao largo.
Pelas bocas, pelos mares, pairam gritos
de naufrágios. Trens noturnos destroçados.
Transes, truques, toques – tardos.
Pelos becos, pelos bares, pares
de pernas ao lado de copos azuis
quebrados regem as flores da culpa
nos canteiros de outros lábios. Corpos azuis
que eu amei rugem no teu,
do meu lado.
Nossos cacos sobre o asfalto.
e os carros passam na chuva
na curva
teu vulto
– a cor do teu pulso
cortado.

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